O desafio foi lançado e eu sabia exactamente quem convidar para jantar este mês. São muitos os escritores contemporâneos de que gosto. Muitos até mais ricos do ponto de vista literário, ou mais conceituados academicamente. Mas a escolha não poderia ser outra. Comandada pelo coração. Porque, por exemplo, não passa um dia 8 de Janeiro sem que me lembre que ela deve estar a iniciar um livro (começa sempre a escrever no dia 8 do primeiro mês do ano). Porque compro impulsivamente cada novo livro. Porque a admiro. Porque admiro as suas histórias comoventes de mulheres fortes, místicas e plenas. Mulheres que são casas. Que são famílias inteiras. Convidei-a para uma refeição ligeira na minha casa. Imaginei que havia de gostar de sabores suaves e honestos: as primeiras batatas novas, uma corvina de alto mar, hortelã fresca. Não me enganei. As horas voaram com conversas sobre os seus livros, as mulheres da sua vida, o seu Chile em tantas coisas tão parecido com Portugal. Revimos livros e confessei-lhe a minha mania de ler vezes sem conta o início e o fim de cada livro. Dos dela, em particular. Ler até decorar como começam e como acabam os livros de que gosto tanto.
Recitámos o início da Casa dos Espíritos, o primeiro dos livros que li, com histórias fabulosas de mulheres únicas. Como são todas as mulheres. Únicas e extraordinárias:
«"Barrabás chegou à família por via marítima", anotou a menina Clara com a sua delicada caligrafia. Já nessa altura tinha o hábito de escrever as coisas importantes e, mais tarde, quando ficou muda, escrevia também as trivialidades, sem suspeitar que cinquenta anos depois os seus cadernos me iam servir para resgatar a memória do passado e sobreviver ao meu próprio espanto.»
Terminámos a noite com as últimas palavras do seu livro Paula, escrito enquanto a sua filha dormia o sono de um coma de que não regressaria. Palavras que são pedras e punhais. Fortes mas ao mesmo tempo tão serenas:
«Senti-me a mergulhar naquela água fresca e apercebi-me que a viagem através da dor terminava num vazio absoluto. Ao diluir-me tive a revelação de que esse vazio está cheio de tudo o que o universo contém. É nada e é tudo ao mesmo tempo. Luz sacramental e escuridão insondável. Sou o vazio, sou tudo o que existe, estou em cada folha do bosque, em cada gota do orvalho, em cada partícula de cinza que a água arrasta, sou a Paula e também sou eu própria, sou nada e tudo o resto nesta vida e noutras vidas, imortal. Adeus, Paula, mulher. Bem-vinda, Paula, espírito.»
Foi uma noite memorável. E a salada de corvina, acompanhada de um bom vinho tinto, não perturbou o essencial: Isabel Allende.
Ingredientes
1/2 couve-flor, arranjada em floretes
4 batatas novas
2 postas de corvina
sal, 1 folha de louro
hortelã fresca
maionese
Preparação
Cozer a couve-flor, partida em floretes pequenos, em água e sal por 8 a 10 minutos. Escorrer e reservar. Cozer as batatas, partidas em quartos, num pouco de água com sal, por 17 a 20 minutos. Escorrer e reservar também. Cozer a corvina, em água e sal, por 15 a 20 minutos, em água temperada com sal e uma folha de louro. Guardar a água de cozer o peixe para outra utilização (por exemplo, para usar como caldo de peixe, para fazer arroz de peixe ou de camarão, etc...). Lascar o peixe e cortar as batatas em pedaços grandes. Em pratos individuais, colocar uma porção de peixe, de batatas e de couve-flor em raminhos. Temperar com maionese e polvilhar com folhas de hortelã fresca. Servir com pão fresco e um copo de um bom vinho tinto. Do Chile, por exemplo.
Bom Apetite!
Participação no 5º Desafio do "Convidei para Jantar", este mês promovido pelo blog "De cozinha em cozinha passando pela minha"
12 comentários:
Babette,
Isabel Allende é a força, a coragem e tudo isso transpira nas suas personagens femininas. Verdadeiras mulheres de armas, decididas, imparáveis, empurradas pela mística do ser feminino. Gostei muito deste jantar. Da convidada, que há muito não leio, e do repasto. Obrigada pela tua participação, que veio enriquecer este desafio.
Beijinhos
Também gosto de mulheres que escrevem sobre mulheres fortes. Sem que isso signifique que o determinante é o género. Há boa e má literatura. Personagens inesquecíveis que são um livro inteiro. Acho que ela diz bem o paradoxal do poder e da fragilidade de algumas mulheres.
Boas escolhas, então. De livros. E de comida. Batatas novas conciliadas com corvina e um toque de hortelã. Ter-lhe-ia feito bem, o teu jantar.
Um beijo a desejar bom dia.
Mar
Linda homenagem que fez a Isabel Allende, uma escritora de mão forte e determinada.
Foi uma escolha sábia e o prato estava com um lindo "ar", acredito que a convidada se sentiu muito lisonjeada com a sua homenagem e com o bonito jantar que lhe preparou. :-)
Beijos
www.blogdochocolate.com
Bela escolha, de escritora e de refeição! Tudo com um lindo ar!
Uma escolha excelente :) Li alguns livros já faz tempo, mas confesso que o primeiro de todos, A Casa dos Espíritos, ficou-me para sempre marcado no coração. Fico arrebatada com as caracterizações das personagens, é quase como se conhecessemos as pessoas em questão, mas sobretudo com o toque de surrealismo presente na sua narrativa. Como se o fantástico coabitasse naturalmente com a realidade. Aliás, essa é uma característica presente em muita da literatura sul-americana. A tua salada parece-me delicada e pouco pretenciosa, muito indicada para servir a uma mulher como Isabel Allende.
Babette, como sempre os teus textos são excepcionais e este fez-me virem as lágrimas aos olhos. Para uma convidada de tanto renome, nada mais apropriado do que uma refeição simples feita com os melhores produtos da terra e do mar!
Obrigada pela partilha. Bjs. Bombom
"O escritor escreve do que tem dentro, do que vai cozinhando no seu interior e que vomita porque já não pode mais."
Lembro-me de ficar triste quando terminei de ler "A casa dos Espíritos" que me despedia da família Trueba e da querida Clara, da "casa grande da esquina"... era como se pertencesse aquela família! Dai para cá li quase tudo o que ela publicou e tenho um prateleira algo parecida com a tua, ihihih!
Gostei muito da tua refeição, simples e cheia de sabor!
Bjs
Carla:
Foi um prazer participar neste desafio!
Mar:
O género não é determinante, mas percebe-se que só uma mulher escreveria como ela escreve. Personagens inesquecíveis, como dizes. Nem imaginas como ficou uma refeição saborosa. Com a hortelã do meu primeiro cabaz fiz muitas experiências, e todas elas resultaram muito bem. As batatas novas têm um sabor inigualável. Acho que o jantar simples que preparei ter-lhe-ia feito bem. Gosto de pensar assim.
Blogdochocolate e Argas:
Foi um prazer escrever sobre Isabel Allende.
Cristina:
É isso tudo. O surreal em paralelo com os meandros da normalidade. Personagens interessantíssimas. A Casa dos Espíritos também é o meu preferido...
Bombom:
Que bom que gostou. A mim deu-me imenso prazer escrever sobre ela.
Lenita:
Também me acontece isso com os livros de gosto muito. Fico triste quando acabam. E por isso o vício de reler e reler e reler a forma como começam e como terminam. Prolongo-os por mais uns instantes!
Babette
Olá Babette
A receita nAo podia ser mais do meu agrado. Peixe e batatas são sempre apetecíveis.
A Isabel allende, tal como o Garcia Marquez e Vargas llosa marcaram um período da minha vida. A minha prateleira da Isabel e semelhante a tua ;)
Depois da filha da fortuna e do retrato a sepia nAo li mais. Quem sabe agora volto a ela?
(desculpa as gralhas, maldito teclado)
Abraço
Guida
Guida:
Não me espanta que esta autora, tal como Marquez e Llosa marquem um período da tua vida. O mesmo aconteceu comigo!!! E que bom que te agradou o repasto simples. Não há dúvida que, quando os ingredientes são bons, a simplicidade é a roupa que lhes veste melhor.
Um beijo
PS. dos mais recentes gostei especialmente de "o meu país inventado".
Também é uma das minhas escritoras favoritas.
O livro de que mais gostei foi o De amor e de Sombra, talvez pela idade em que o li, mas confesso que me faltam ler alguns dos que tens nessa prateleira... Neste momento estou a ler Carmen Posadas (Pequenas Infâmias) e estou a adorar, até porque a 'comida' está bem presente na narrativa ;)
A corvina... noutro dia usei pela primeira vez e não gostei, mas talvez tenha sido por ser congelada :( Mas de batatinhas novas, sou fã :)
Beijos
Teresa
Tecas:
Também adoro a Carmen Posadas! Pequenas Infâmias foi um dos que mais gostei. Também gostei mito do Cinco moscas azuis e já tenho A Fita Vermelha para ler. Diz-me a minha mãe que é muito muito bom. Mais coincidências, não?
Beijo!
Babette
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